Histórias da educação na literatura VI [Djunga, de Henrique Teixeira de Sousa]

No primeiro capítulo de Djunga, na companhia de “Inocência, vestida com um casaquinho de malha, na cabeça um lenço de seda, e de Hélder de pulôver, de braço dado”1, chegámos à Escola Técnica “que repousava do rebuliço diurno”.

“O antigo director, que vivia agora em Portugal, era dado à animação cultural, promovendo palestras e récitas no salão do ginásio a que afluía imensa gente. Ele, Hélder, chegou a proferir ali uma palestra sobre a história do Seminário-Liceu de S. Nicolau e o papel desempenhado na génese da inteligentzia cabo-verdiana. Foi nos anos sessenta. Recebeu muitos aplausos. Mas, também, viu-se duramente confrontado com determinado sector que achava alienada e alienante a mentalidade dos antigos seminaristas. (…) Foi uma discussão brava em que teve de explicar melhor as afirmações e conclusões. No princípio era o verbo. Do verbo se fez luz mais tarde. Alguém da plateia gritou com uma vozinha de mascarinha de cu pelado: «in principio verbum est». Voltou para casa chateado com esses nacionalistas radicais. Podia compreendê-los, mas não conseguia aderir à faceta demolicionista dessa malta que estava convencida de que a independência seria uma espécie de Fénix renascida das próprias cinzas. Cabo Verde seria o mesmo Cabo Verde, apenas politica e administrativamente diferente.” (p. 21)

Neste passeio imaginário deparei-me com uma escola que, pelos cursos ministrados e traça arquitetónica, se afastou dos padrões educativos tradicionais, abriu-se ao mundo do trabalho, mantendo-se permeável à “animação cultural” num ambiente de contestação dos cânones classicistas e de temáticas consideradas “alienadas e alienantes”.

A realidade chancela o romanesco

A Escola Técnica Elementar foi instituída pelo Decreto n.º 40.198, de 22 de junho de 1955, em Mindelo e evoluiu, três anos depois, para uma Escola Industrial e Comercial, que incluía o ciclo preparatório, cursos industriais (formação de serralheiro, carpinteiro, marceneiro e montador eletricista) e comerciais (geral de comércio e formação feminina).

Escola Técnica Elementar do Mindelo (perspectiva). In Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação, abril de 1957, p. 15.

Inicialmente alojada no edifício do Liceu Gil Eanes, a Escola Técnica foi instalada num edifício “de linhas sóbrias e elegantes no local do Quartel da Matiota”, com “uma vasta galeria com 50 metros de comprimento por 3 de largura, amplas janelas em arcaria, que abrange todo o edifício, constituído por duas alas, separadas por um corredor com 16 metros por 5”.2

Henrique Teixeira de Sousa, através da personagem Hélder Rocha que ambicionava escrever sobre “o hoje e o ontem numa perspectiva intemporal e universal”3, lembrou-se do antigo diretor da Escola, “que vivia agora em Portugal, dado à animação cultural, promovendo palestras e récitas no salão do ginásio a que afluía imensa gente”. Na realidade, recordou o professor Guilherme Dias Chantre, diretor da Escola Técnica de 1961 a 1974, que promoveu a cultura letrada, o teatro, as artes plásticas.

Nas imediações da Escola Técnica, o autor de Djunga, sob a identidade Hélder Rocha, escrivão de direito – romancista, falou-me de uma palestra que aqui proferiu sobre a história do Seminário-Liceu de S. Nicolau, nos anos sessenta. Confessa que, apesar de muito aplaudido, se viu confrontado com uma plateia que denegava os antigos seminaristas, que “mandavam escritos para o Almanaque de Lembranças recheados de tudo menos de Cabo Verde; falavam de pintassilgos, mariposas, fiordes, flocos de neve, Júpiter, Saturno, Urânio, Plutão, Plutarco, Éfeso, tudo coisas que nada diziam daquela terra”4.

A palestra aconteceu de facto (sobre o seminário ou qualquer outro assunto) como se comprova numa entrevista que Henrique Teixeira de Sousa, então Presidente da Câmara Municipal de Mindelo, deu ao “Alvorada Técnica” em maio de 1963. À pergunta “Quando é que nos dará o prazer de vir fazer uma palestra, integrada no nosso Ciclo de Conferências da Escola”, respondeu “Já fiz uma. Mas farei outra logo que tiver uma aberta nos meus afazeres”.

O dessossego literário de Teixeira de Sousa/Hélder Rocha, “farto dos ventos de leste, dos gafanhotos, das secas, dos contrabandos, dos naufrágios, das terras estranhas”5 e “a faceta demolicionista” de alguns “nacionalistas radicais” na plateia – que aplaudiu o escritor contestando-o – enquadram-se no ambiente gerado pela independência nacional, “primeiramente sob o signo do africanismo e depois pela (re)afirmação da caboverdianidade”6.

Nota final: Com esta crónica termino a série de [re]cortes da educação na literatura.

(O texto observa as normas do Novo Acordo Ortográfico com exceção das citações que respeitam a grafia original).

1 Sousa, H. Teixeira, 1990, p. 18 (adaptado); 2 Cabo Verde Boletim, abril 1957, p. 15; 3 Sousa, H. Teixeira, 1990, p. 11; 4 Ibidem, p. 21; 5 Ibidem, p. 16; 6 Fernandes, Gabriel (2006). Em busca da Nação. Florianápolis /Praia: Ed. UFSC / Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, p. 250.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 923 de 7 de Agosto de 2019.