Histórias da Educação na Literatura II [Domus Mater, de José Lopes]

Hoje, do nosso antigo Seminário

Só resta em seu conjunto o edifício,

Que se ergue como o altar do sacrifício,

Mas de Mória passando a ser Calvário...
Da descrença de um tempo ingrato e vário

A sua queda é um eloquente indício.

Que ao menos, desse Altar, a Deus propício

Suba a chama dum círio funerário,
E seja a gratidão, sentida e imensa,

De quantos já beberam Luz e Crença!

Os homens só pouparam os seus muros!...
Passando o mar Vermelho… a pé enxuto

Deram-lhe o novo nome de «instituto»,

Legando os outros aos séculos futuros...

                   José Lopes, XVI soneto do ciclo Domus Mater (1882-1887) [i]

 A poesia é também uma fonte da história da educação. Num soneto, José Lopes regista factos históricos que viveu, com a liberdade de criação que é consentida a um poeta. Uma leitura hermenêutica do soneto permitiu-nos [re]cortar factos que as fontes documentais tradicionais – leis, notícias de jornais da época – comprovam e complementam.

1.ª estrofe

Hoje, do nosso antigo Seminário / Só resta em seu conjunto o edifício”.

O poeta José Lopes foi aluno do Seminário-Liceu de S. Nicolau e cursou os estudos preparatórios nos anos 1882 a 1887, época em que a instituição granjeou notoriedade e prestígio. Em 1917, da ilha de Sto. Antão onde exercia o magistério primário, assistiu à extinção da Escola que o educou e formou, e à degradação “dos magníficos prédios do extinto seminário, que de dia para dia se vão deteriorando sem nenhuma utilidade, desaproveitados”[ii]. A emoção do antigo aluno está contida nas alegorias bíblicas Mória e Calvário.

2.ª estrofe

“Da descrença de um tempo ingrato e vário / A sua queda é um eloquente indício”.

A queda do seminário foi “um eloquente indício” do regime republicano anticlerical, instaurado em Portugal em 1910, que traçou o destino da instituição religiosa. O semanário republicano A Voz de Cabo Verde, em agosto de 1913, num editorial intitulado O que se passa no seminário da ilha de São Nicolau, denunciava: “O seminário é hoje um quisto; amanhã será um cancro. É um inimigo encoberto, uma vesícula cheia de veneno, no organismo administrativo de Cabo Verde. Sua extinção impõe-se”. “A conveniência social da conservação desta instituição, que tem sabido bem merecer da Pátria”, no dizer de O Futuro de Cabo Verde de dezembro de 1914, não impediu a sua dissolução e a instalação de um liceu não-confessional na cidade de Mindelo, em 13 de junho de 1917.

3.ª estrofe

“E seja a gratidão, sentida e imensa, / De quantos já beberam Luz e Crença!”

O uso da luz como metáfora de conhecimento está presente na escrita “sentida e imensa” de antigos alunos e professores do Seminário. Segundo o professor João Augusto Martins “o Seminário-Liceu alumia o espírito e as consciências, refletindo os seus clarões sobre a Província inteira”[iii]. Na opinião de José Reis Borges, desta instituição “partiu a luz que mais intensamente iluminou Cabo Verde, a suave luz da fé e moral cristãs de mistura com as beneficentes luzes do a b c[iv].

4.ª estrofe

“Deram-lhe o novo nome de «instituto», / Legando os outros aos séculos futuros…”

Extinto o Seminário na Ribeira Brava e instalado o Liceu em Mindelo (1917), surpreendentemente, um ano e meio depois, a Casa do Seminário acolheu o ensino liceal – o Instituto de Instrução Secundária (finais de 1918) e, mais tarde, o Instituto Cabo-verdiano de Instrução (1925).

A última tentativa de recuperação do prestígio cultural e educativo na “ilha hesperitana” foi malograda por determinação do governador que, por Portaria de 9 de junho de 1931, “tornando-se urgente a utilização do antigo edifício do Seminário de Cabo Verde, na ilha de S. Nicolau, para nele serem alojados os presos políticos enviados para esta colónia”, encerrou as aulas do Instituto Cabo-verdiano de Instrução. Insólito destino para uma instituição educativa, “de Mória passando a ser Calvário…”!

Publicado no Expresso das Ilhas, de 27 de março de 2019.

[i] In Jardim das Hespérides, editado em 2016 pela Academia Caboverdiana de Letras, p. 156.

[ii] O Manduco, de 1 de setembro de 1923.

[iii] In Madeira, Cabo Verde e Guiné (1891). Liv. António Maria Pereira, p. 150.

[iv] José dos Reis Borges, Boletim da Agência Colonial, 1929.